Era uma vez uma vaquinha muito timidazinha que vivia com a mãezinha numa terrinha alentejana. Para seu grande desgosto, não tinha nome. A mãe já lhe havia explicado que Beja ficava muito longe e que em Barrancos não registavam nomes de vacas, visto estarem sempre ocupados com touradas e porcos pretos. E que o galo também não tinha nome e muito menos o burro, pelo que deixasse de se lamuriar. Mas, em compensação, tinha uma alcunha. Ela era a Vaquinha Vermelha. E ela nem era comunista nem nada, que o Alentejo já não é o que era e agora até já por lá haviam construído o Alqueva. É que ela corava com qualquer coisinha e desde que o Cavaco falou no Pulo do Lobo andavam sempre a acontecer coisinhas lá por aquelas bandas e ela ficava coradinha o tempo todo.
Um belo dia, a mãezinha (da vaquinha, a tal vermelhinha de tão coradinha) mandou-a levar um cestinho cheio de doces de grama à avozinha (da vaquinha, que a da mãezinha já havia morrido) que vivia sozinha do outro lado do monte e estava muito doentinha. A mãe tinha pensado enviar só meio cestinho, mas decidiu que ele iria cheio, pois já andava meio enjoada de tanto doce de grama e a vaquinha coradinha poderia querer comer um, ou até dois, pelo caminho, ou até dar à sua amiga cabrinha, também se nome, mas que não era coradinha, dado ser toda pretinha, somente com uma risca branca em diagonal por baixo do olho esquerdo e que, diziam, tal se devia ao facto de o velho bode seu pai ter sido apanhado de raspão por raio que lhe havia arrancado um chifre um ano antes de ela ter nascido e que por pouco não tinha impedido a sua existência. E ela gostava muito da sua risca pois assim ficava diferente de todas as outras cabras da quinta e só uma vez na Amareleja tinha visto outra muito parecida e tinha até perguntado à mãe se seria sua prima, mas a mãe fez de conta que não ouvia e foi, zangada, conversar com o pai. Ela, a vaquinha coradinha, e a sua amiga cabrinha, a da risquinha, gostavam muito de pastar juntas nos campos do ti Manel Carrapito enquanto este se entretinha a seguir um caracol na sua marcha acelerada pelo tronco de uma azinheira acima.
Mas a mãe era uma vaca velha e conhecia muito bem a fama do feroz e temível Touro Chifrudo que vivia por aquelas bandas, pois já se tinha cruzado com ele por algumas vezes e desejava cruzar-se mais, pelo que lhe recomendou muito bem recomendado que em circunstância alguma se aventurasse pelo prado encantado, que desse a volta, que passasse ao largo, que passasse longe, que se fosse preciso atravessasse mesmo os terrenos das vacas amarelas, que fosse rapidinho, que estivesse sempre atenta, que nunca baixasse as orelhas nem para enxotar uma mosca, que nunca levantasse o rabo para não ser vista, que fosse numa pata e viesse na outra, pois temia que o velho-mas-ainda-em-forma Touro Chifrudo fizesse um churrasquinho com ela se lhe deitasse o corno em cima.
E a vaquinha lá foi, lá foi, naquela manhã tão linda, tão linda, mas mesmo tão linda em que o céu era azul, mas tão azul que era mais azul que as meias do Pinto da Costa, as nuvens tão brancas, que pareciam ter sido lavadas com lixívia Neoblanc, a relva era tão verde, mais verde que as riscas da camisola do Sporting, as amoras que nasciam das silvas do caminho eram tão doces, mas tão doces, que eram mais doces que os lábios da Angelina Jolie e tão macias, tão macias, que eram mais macias que algumas partes da Soraia Chaves que eu não sei bem como são porque nunca lá passei a mão, mas gostava de ter passado. Convidava mesmo a um passeio e, como a vaquinha gostava muito de passear e também gostava muito de ir visitar a avozinha, lá foi ela, toda contente, caminho fora, em cima das suas quatro patinhas.
Uma brisa muito suave vinda de cima, lá dos lados de Serpa ou então de Évora (que a vaquinha sabia muito pouco de geografia e a mãe não a deixava ir à escola porque ela não conseguia segurar bem no lápis e o professor gostava muito de mamar nas tetas), despenteava os cabelos de uns senhores que andavam de rabo pró ar a apanhar bolotas que metiam em grandes baldes e que já tinham três cheios e dois estavam quase meios, sendo que um tinha mais que o outro. Quatro pardais estavam reunidos num galho do chaparro mais alto e berravam o seu coro matinal, irritando os que ainda dormiam. Até que um corvo deu uma grande bicada num e o grupo desfez-se e acabou assim a chiadeira.
E a vaquinha estava tão contente, mas tão contente e tão feliz da vida por ir visitar a avozinha e por sair de casa que só não saiu trotando porque não sabia trotar, mas saiu cantando, mesmo sem saber cantar:
Pelo prado fora
Cá vou eu sozinha
Levar uns docinhos
À minha avozinha
E repetia sempre a mesma coisa porque não sabia o resto da música, e ela gostava assim porque tinha aprendido com a sua prima malhadinha que lhe tinha ensinado e ela também só sabia esta parte. E prestava muita atenção à magnífica estrada ladeada de silvas carregadas de amoras pretas e algumas vermelhas do lado direito e de um muro baixo, meio escangalhado e cheio de ervas, à esquerda e que se estendia à sua frente, mas que ela não via onde ia dar porque tinha uma curva a uns trinta passos. E ela gostava muito de prestar atenção, mais para não pisar nas bostas das outras vaquinhas do que para apreciar a beleza da paisagem. Ela não gostava nada de borrar as suas patinhas pois era muito asseadinha e depois tinha de as ir esfregar na grama e mesmo assim ficava sempre um cheiro que a incomodava pois era difícil limpar tudo muito bem no meio dos cascos e ela não conseguia esfregar com um pau porque não o conseguia segurar.
Mas de repente, em plena manhã de céu azul, mais azul que as meias do Pinto da Costa e de nuvens brancas lavadas com lixívia Neoblanc, parou, toda espantada! As pupilas dos seus grandes olhos, que o milhafre andava há umas semanas a cobiçar, dilataram-se tanto que ela até se sentiu meio zonza e teve de as cobrir com as grandes pálpebras e deixar entrar pouco sol pois estava a começar a ficar cega. Entreabriu as pestanas e, mesmo à sua frente, a um palmo do seu nariz, ou seja, a uma pata do seu focinho, nada mais nada menos que uma anisoptera com as suas asinhas transparentes a bater com muita força!
Acontece que a vaquinha gostava muito de libelinhas. Tinha adquirido uma enorme admiração por elas uma vez em que tinha ido com a sua amiga cabrinha beber água ao açude e tinha visto um helicóptero a carregar um grande balde de água que foi deitar em cima de uns carvalhos que estavam a arder. E depois viu junto à borda um pequenininho pousado numa folha e a sua amiga cabra é que lhe disse que aquilo não era um helicóptero, e que era uma libelinha, da subordem anisoptera e ela gostara muito deste nome. E ela ficou tão encantada que foi atrás da libelinha e foi andando, andando, para trás e para a frente, para um lado e para outro, sem se dar conta dos perigos que poderia correr. Até podia ter caído num poço se por acaso houvesse algum por aqueles lados, mas não caiu porque não havia nenhum.
E de repente, assim como o Gaspar deu à sola do governo e fugiu, a libelinha sumiu. E foi então que a vaquinha olhou à volta e não sabia muito bem onde é que estava. Mas como havia algum nevoeiro por aqueles lados, ela deduziu que estava no prado encantado e ficou toda a tremer e aterrorizada, não fosse senhor Touro Chifrudo aparecer. Só não chorou porque não quis.
– Porra, pensou. Agora tenho de voltar para trás.
Ela não gostava nada de dizer palavrões porque ficava ainda mais coradinha, mas como só pensou, ninguém iria ouvir.
Andou um pouco às arrecuas, só três passadas, deu meia volta e voltou a correr para o caminho com silvas e amoras pretas e algumas vermelhas e o muro meio escangalhado. E quando saiu do nevoeiro e viu bem o céu azul, mais azul que as meias do Pinto da Costa, ficou toda contente e lá foi de novo, desafinando os mesmos versos lá de cima e prestando muita atenção, mais para não pisar nas bostas das outras vaquinhas do que para apreciar a beleza da paisagem.
Mas o Touro Chifrudo era um boi informado, pois até lia o Expresso aos sábados e costumava assinar o Clarim de Beja e sabia que a avó da vaquinha vermelhinha estava muito doente. E, deve ter sido pelo cheiro, sabia que a dona vaca tinha feito docinhos de grama. Deduziu logo que a dona vaca mandaria a vaquinha levar os docinhos à avó e como sabia que ela gostava muito de libelinhas ficou no alto à espreita a ver se ela aparecia atrás de alguma pelo prado encantado adentro, preparado para lhe deitar a pata em cima. Mas como a vaquinha se assustou e pensou “porra” e voltou para trás, o Touro Chifrudo teve de pensar numa outra forma de lhe armar uma cilada. E como a vaquinha iria ainda demorar muito a chegar à casa da avozinha, pois era alentejana, tinha tempo para pensar em alguma coisa e dirigiu-se para a casa da avozinha da vaquinha, que a dele tinha sido transformada em bifes quando ainda era nova.
Pôs-se a trotar, que ele era um boi-velho-mas-em-forma e sabia trotar muito bem e, em menos tempo que o Portas sai-e-volta-a-entrar no (des)governo, tomou posse da cama da avozinha fingindo ser uma vaquinha muito velhinha e muito doente. Tentou disfarçar a crista à índio moicano despenteando-se todo, dando mais um ar de bruxa do filme do Robin dos Bosques, aquele em que entra o Morgan Freeman que nos outros não me lembro bem e o Touro Chifrudo gostava muito dele pois já o tinha visto no Se7en.
Ficou bastante tempo à espera. Já estava a ficar meio impaciente, mas lá se lembrou que a vaquinha era alentejana e pensou em fazer não sabe bem o quê porque de repente ouviu um toc toc toc na porta do casebre. Só podia ser a vaquinha, pois ela gostava muito de bater três vezes.
– Quém é? Perguntou o Touro Chifrudo tentando esganiçar a voz, mas esta saiu com um tom de bagaço.
– É a sua netinha, avozinha.
– Entra filhinha, digo, netinha.
Qrrréééééééé. A porta abriu-se. Qrrréééééééé. A porta fechou-se. Naquele tempo ainda não tinham inventado o óleo Galp Super Plus e o azeite era muito caro e não podia ser desperdiçado em dobradiças ferrugentas.
– Que voz grossa que tu tens, avó!
– Estou muito rouca, minha netinha! Andei a chupar muito ontem à noite!
– Andou a chupou o quê, avó? – Quis saber a vaquinha, pois era muito curiosa e não estava a ver nenhum frigorífico lá em casa e há mais de três semanas que não via passar a carrinha da Olá.
– Chupei geada, minha netinha, ora essa!
Finalmente, a vaquinha olhou bem para a avó e ficou meio espantada. Ou talvez até toda espantada.
– Ó avó, tu hoje tens uns olhos muito grandes!
– São para te enxergar melhor, minha netinha!
– E porque é que tens a língua tão grande? Deves estar mesmo muito doentinha!
– É para te lamber melhor, minha querida!
Os olhos do boi brilharam e o casebre ficou tão iluminado que a vaquinha reparou por fim…
– E esses chifres, avó, porque é que tens uns chifres tão grandes?
– Ah!… Isso tens de perguntar ao teu avô!
– Hã?!!!… Não sabia que tinha um avô!
– Ah, isso é uma grande história, ninguém precisa de saber…
– Mas… ó avó, o que é essa coisa que tens aí no meio das pernas?
– Isto é para te comer!
Dizendo isto, o Touro Mau atirou-se à indefesa e inocente vaquinha. E…
… e fazemos aqui um intervalo pois esta parte foi censurada…
… e, dizia o locutor, mais uma vez o Benfica saiu fortemente beneficiado pela actuação do trio de arbitragem. Um resultado escandaloso. Ganhou com um golo marcado com a mão e ainda por cima obtido em posição irregular…
.. Hã? Já acabou…. ok, continuemos…
E a vaquinha gostou tanto que só não mandou um email à mãe a dizer que ia dormir a casa de uma amiga e que só voltaria na manhã seguinte, porque não sabia o que era um email. Mas ficou na mesma e só voltou na manhã seguinte.
E, sob o mesmo céu azul, mais azul que as meias do Pinto da Costas, e das mesmas amoras, mais gostosas que os lábios da Angelina Jolie deitada sem camisa na relva macia do estádio de Alvalade, mas de outras nuvens brancas, embora estas também lavadas com lixívia Neoblanc, ela voltou para casa cantarolando e feliz:
Pelo pasto fora
Não volto sozinha
Pois dentro de mim
Tenho outra vaquinha
FIM
– E a avó?
– Vai bem, muito obrigado!